terça-feira, outubro 10, 2023

Reflexões sobre a vida aos 76 anos

 Não, você não está caduco/a, eu estou repetindo o teto do ano passado.

Ninguém gosta da morte ou falar sobre. Mas sinto que é preciso. 

Quando jovens, a onipotência predomina, não percebemos a vulnerabilidade da vida. 
Há uma vida pela frente, muitos caminhos a escolher. 
Ao chegarmos à meia idade percebemos que tudo passou muito rápido, que fizemos escolhas 
que trouxeram mais dor do que alegria de viver. Mas há que seguir, o trajeto nem sempre leve, para a maioria de nós. Nos apegamos aos filhos, parceiros, ao trabalho, àquilo que nos traz mais satisfação. 
Os amigos começam a ir embora, muitos sem tempo para despedidas. Quantos, distantes, 
e a notícia chega por uma voz ao telefone quando tentamos falar com eles. Outros ficaram 
perdidos pelo caminho e nunca mais deixaram rastros. Outros mudaram tanto que, apesar do afeto impossível de apagar, é torturante dialogar ou conviver.
C'est la vie.
Passamos a lembrar da juventude e questionar o porquê de certos encontros ou desencontros.
Agora, à distância, percebemos o quanto éramos imaturos, despreparados para a vida. 
Mas quem está? 
Nossa cultura ocidental, especialmente, nós, latinos, fomos protegidos mais do que 
deveríamos e ao sair para a batalha, desconhecemos os desafios que encontraremos. 
Como preparar alguém para a vida?  A experiência do outro vale muito pouco para nós, 
estamos sempre pensando por conta própria, o que é saudável, claro, mas que traz 
consequências. Vamos seguindo instintos e emoções- amores, paixões.

E agora ao olhar para trás nos encontramos repletos de perguntas.
Vittorio Gassman numa entrevista inesquecível, diz que deveríamos viver duas vezes: 
a primeira como um ensaio para a segunda. Quem me dera! Ah! Aquele dia em que conheci 
aquele jovem, ambos com 17 anos, teria sido diferente... Teríamos sido felizes?  
Esse jogo é um pouco perigoso. Pode nos trazer nostalgia.
Não sinto tristeza. A velhice traz um sossego n'alma. Não há mais grandes  expectativas.
O jogo está posto. Claro que pode-se mexer em algumas cartas, mas não muito. 

Não há mais muito a esperar. E a morte fica cada dia mais próxima. 


Jestem Tutaj- um filme sobre o final da existência

Filme imperdível!

A morte, vista em primeiro plano, de uma idosa.

Quem a acompanha é o marido, também velhinho. A filha, muito ocupada, vem todos os dias e está sempre disponível.

O amor do marido é comovente.

Um filme sobre velhice, doença, morte. 

A cineasta é Julia Orlik muito jovem! Incrível como percebeu as nuances do final de uma vida.


 https://vimeo.com/799104662

domingo, março 19, 2023

Racismo, entrevista com Muniz Sodré- FSP

 

Aceito a expressão, mas racismo não é estrutural no Brasil, diz Muniz Sodré

MAURÍCIO MEIRELES 19 MARÇO 2023 16min de leitura

CONTRASTE

[RESUMO] Em novo livro, Muniz Sodré contesta o conceito de racismo estrutural, que a seu ver carece de base científica. Embora não se oponha ao uso da expressão, o sociólogo e colunista da Folha afirma que a discriminação racial no Brasil é difícil de combater por ser institucional e intersubjetiva, tendo como marca a negação do preconceito, e que teria se reconfigurado depois da Abolição com as ideias fascistas europeias. Sodré defende ainda que o pensamento da aproximação, manifestado em algumas situações brasileiras, traz oportunidade de combater o racismo.



Muniz Sodré é um intelectual de luta. Faixa-preta de caratê, continua a praticar o esporte aos 81 anos. A idade só o obrigou a deixar para trás a capoeira, que ele treinou com mestre Bimba, um dos grandes capoeiristas do Brasil.

Professor emérito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e colunista da Folha, ele é um dos mais influentes pesquisadores da comunicação no Brasil. Também é um dos obás de Xangô, espécie de ministros do Ilê Axé Opô Afonjá, um dos mais antigos terreiros de candomblé de Salvador.

O sociólogo e colunista da Folha Muniz Sodré em seu apartamento no bairro Cosme Velho, no Rio - Eduardo Anizelli/ Folhapress

Além de livros publicados sobre a mídia, Sodré também publicou obras acerca da cultura brasileira, em especial a cultura negra. Em seu novo lançamento, "O Fascismo da Cor" (Vozes), ele traça uma radiografia da discriminação racial no Brasil, construindo o argumento de que, passadas a Abolição e a Proclamação da República, uma outra forma de racismo se estabeleceu no país.

Para o pesquisador, essa nova configuração tem laços com as ideias fascistas surgidas na Europa e com o eugenismo associado a elas. Um dos divulgadores desse discurso no país, lembra, era o escritor Monteiro Lobato.

Além desse diagnóstico, Sodré dedica parte significativa do livro a contestar o conceito de racismo estrutural, tal como desenvolvido por Silvio Almeida, agora ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania. "Se fosse estrutural, já teria sido derrotado. O movimento negro é o movimento mais antigo da sociedade brasileira", diz o autor, que propõe no lugar o conceito de "forma social escravista".

Em entrevista à Folha, Sodré analisa o perfil do racismo à brasileira e explica os motivos pelos quais discorda de Silvio Almeida. Ele também defende que as rodas de capoeira e os candomblés podem oferecer uma chave de saída para a discriminação racial.



Na primeira metade do seu livro, o sr. contesta o conceito de racismo estrutural, hoje muito popular. Por que considera essa definição insuficiente para explicar o racismo no Brasil? O conceito de estrutura é um conceito complexo. Primeiro, tenho que advertir que não tenho nada contra falar em racismo estrutural, porque acho que, do ponto de vista político, é bom, é fácil. Dá um ancoramento para a ideia de racismo aqui no Brasil.

Mas eu digo que ele não é estrutural. Parto de coisas simples, como a frase do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, quando ele disse que, no Brasil, as estruturas são feitas para não funcionar. Ele está falando da estrutura jurídica, da estrutura econômica, e é verdade. As estruturas aqui são feitas para não funcionar. Por que a única a funcionar seria o racismo?

Acho que o racismo funciona exatamente porque ele não é estrutural. Minha visão é que o racismo que existia no Brasil estava consolidado e ligado à escravatura. Portanto, a estrutura escravista existia. Há um livro do historiador Jacob Gorender em que ele mostra a estrutura existente na escravidão. Outros ensaístas, como Alberto Torres, mostram que era uma estrutura que funcionava.

O Brasil se sustentou na escravidão, foi ela que fez a acumulação primitiva [de capital] aqui e foi a coisa mais bem-organizada neste país. Mas isso acabou com a Lei Áurea. Ao contrário do que acham alguns amigos meus escritores negros, a Abolição não foi uma farsa. Ela efetivamente acabou com a sociedade escravista e, portanto, acabou com a estrutura escravista, mas não acabou com o racismo. São duas coisas diferentes.

Antes da Abolição, não era necessário um racismo atuante. Quatro quintos da população que trabalhavam como escravos eram torturados no Império de dom Pedro 2º. Mesmo assim, houve naquele momento uma classe média negra, uma intelectualidade negra que emergiu. Grandes figuras da literatura e das artes eram negras.

O primeiro embaixador plenipotenciário do Brasil na Inglaterra, Francisco Jê Acaiaba Montezuma, era um negão baiano muito brilhante. Os artistas negros de Pernambuco formavam uma classe média com quase 2.000 pessoas. Só ouvimos falar deles hoje depois de livros focados nisso porque, como dizia Mário de Andrade, foi uma aurora que não deu dia. Quando veio a Abolição, se esqueceu de tudo isso. A cultura negra passou a ser a cultura popular, reconhecida muito tempo depois.

Se o racismo brasileiro não é estrutural, qual seria a característica dele? Ele é institucional. Defino no livro o que é estrutura. É um termo muito preciso na sociologia e na filosofia. O conceito pressupõe uma totalidade fechada de elementos interdependentes. Você pode falar, por exemplo, da estrutura jurídica: a doutrina do direito se reflete nos tribunais, no processo penal, nas leis. Isso é estrutural.

Se dissermos que o racismo é uma estrutura, temos que mostrar qual é a interdependência dos elementos. Aí você diria que, quando se vai selecionar alguém para um emprego, só brancos são selecionados. Mas a estrutura é formal, tem uma forma escrita ou uma forma de costumes que é reconhecida por todos. A discriminação racial no Brasil não é reconhecida por ninguém. Nenhum Estado ou governante se diz racista. Às vezes, os racistas mais atrozes diziam que não eram racistas.

A grande dificuldade do combate ao racismo no Brasil é que, aqui, a negação funciona. O grande mecanismo do racismo é a negação.

Li o livro do Silvio Almeida ("Racismo Estrutural"), e ele não diz o que é uma estrutura. O racismo foi estrutural nos Estados Unidos, na África do Sul...

Então, o sr. defende que, para ser estrutural, o racismo precisa estar explicitamente amparado pela burocracia do Estado. Exatamente. Para mim, o racismo é institucional e intersubjetivo. Por isso ele é muito difícil de combater. Você não o pega. Se o racismo brasileiro fosse estrutural, já teríamos acabado com ele. O movimento negro é o movimento mais antigo da sociedade brasileira, ele vem desde a Abolição.

Silvio Almeida fala de instituições que funcionam como uma correia de transmissão do racismo. Sou obrigado a me perguntar: correia de transmissão a partir de onde? Quando Lênin diz que os jornais deveriam ser a correia de transmissão do partido para as massas trabalhadoras, você tem de um lado o partido, de outro, as massas, e no meio, o jornalismo.

Sem dúvida, as instituições são uma correia de transmissão, mas não de uma estrutura. Onde é que está essa estrutura? No Estado? Mas o Estado não tem leis racistas, elas acabaram com a Abolição. Estão na economia? Não conheço leis econômicas racistas, conheço discriminações econômicas, mas não leis.

sistema tributário brasileiro, que pesa mais sobre os pobres, em sua maioria pretos e pardos, não tem um componente racial implícito? Não tem uma implicação estritamente racial, são os pobres que pagam mais impostos. Entre eles, você tem claros e escuros —ainda que, sem dúvida, os salários mais baixos sejam dos negros. Acho importante que se estudem esses aspectos embutidos na economia, nas instituições, na remuneração da força de trabalho. Com esses dados, é possível intervir no debate público, tomar um partido antirracista.

Não sou contra a expressão racismo estrutural, sou contra a cientificidade dela.

O sr. disse que, depois da Abolição e da Proclamação da República, surgiu uma nova forma de racismo. Qual é o seu perfil? O segundo ponto do livro é mostrar a diferença entre sociedade e forma social. Você não vai encontrar na literatura sociológica brasileira essa distinção, mas ela é feita por mim. A sociedade implica uma estrutura: ela tem uma interconexão de seus elementos, ou seja, o modo de produção está articulado com o sistema jurídico, com a política... Toda a visão marxista sobre a sociedade, para mim, é coerente. Nesse ponto, sou bem marxista.

Mas a forma social é outra coisa. Ela é uma imagem que a sociedade projeta de si mesma, que ela tem ou quer ter de si. Isso nós temos individualmente: você tem uma imagem de si mesmo e quer que os outros reconheçam você como uma imagem válida.

Isso também existe em termos coletivos. A imagem que a sociedade tem de si é gerida pelo Estado e pelas classes dirigentes. Ela pode ser oficial, mas também subterrânea, uma imagem oculta que existe e lhe determina. Isso eu chamei de forma social escravista.

O que seria essa forma social escravista? Ela é aparência, mas isso não quer dizer que seja uma ilusão. As aparências existem e continuam a existir por ter força, e é um erro querer lidar só com o que é material, concreto. Na forma social, falo de uma aparência que a sociedade quer ter sobre si mesma: as classes dirigentes querem se ver como brancas, europeias e cristãs, sem ter nada a ver com negros.

Esse querer ver-se é a forma social. Dentro dessa imagem, se desenvolvem os mecanismos linguísticos, psicossociais, de subjetividade e de comunicação. Portanto, a aparência cria formas.

Ou seja, acabou a escravidão, mas nasceu a forma social escravista. Ela mantém a escravidão como ideia e como discriminação institucional. Essa forma não é captada apenas objetivamente, não está em números. Portanto, não é pega pela sociologia quantitativa. São também as percepções, os afetos. A forma social é um conceito que vem da sociologia alemã e está na sociologia francesa contemporânea.

O sr. dá um papel de destaque ao patrimonialismo nisso que chama de forma social. A forma escravista está ancorada nesse modo de controle social que é o patrimonialismo, ou seja, no poder exercido por grandes famílias, pelo compadrio, pelo afilhadismo. Esse parentesco dominante no Brasil é branco e reproduz a forma social racista. Quis mostrar como essa forma é tão ampla, tão invasiva, tão maior que a estrutura que ela pode atingir o próprio preto. O preto pode se adequar a ela e ser racista contra pretos também.

Vivemos essa forma no cotidiano. Podemos vê-la em explosões súbitas de fúria e agressões. No Maranhão, o cara estava passando com a mulher, veem um homem tentando abrir o próprio carro e acham que ele está tentando roubar o veículo. Aí os dois descem a porrada no homem. Quando foi jogado no chão, a mulher grita para o marido chutar a cabeça da vítima. O carro era dele. Isso é diário no Brasil.

O sr. diz que essa nova manifestação do racismo está ligada ao fascismo europeu. Qual é a relação entre os dois fenômenos? Diferentemente do período da escravidão, o racismo pós-abolicionista é plenamente doutrinário, ou seja, ele incorpora ideias europeias sobre o racismo. Essas ideias vêm principalmente da doutrina do eugenismo.

Isso não coincide, em termos de data, só com o período pós-Abolição, mas, nesse momento no mundo, o eugenismo faz parte de uma atmosfera fascista. O que faz com que o fascismo se expanda para Portugal, Espanha e outros países é a questão da preservação do cristianismo e da pureza do homem europeu. É o nacionalismo extremado do homem branco.

O racismo ocidental vem da Igreja Católica e é primeiro antissemita. O modelo do racismo [contra os negros] é o antissemitismo: as primeiras vítimas são os judeus, e os primeiros carrascos são os padres. Depois, isso se transfere para o negro. Os escritos do fascismo incorporam a ideia de eugenia e isso chega aqui muito tempo depois da Abolição, através de igrejas, mas principalmente por meio de intelectuais —Monteiro Lobato é o grande modelo.

O fascismo é o espírito da época do racismo brasileiro. É dele que conflui, para as classes dirigentes brasileiras, a discriminação do negro, que já não era mais jurídica nem política.

No livro, o sr. aponta Nilo Peçanha, que virou presidente em 1909 e era negro, como um caso a ser estudado. O que a história dele diz sobre o racismo à brasileira? Examinaram pouco essa história. Nilo Peçanha veio de uma família pobre em Campos dos Goytacazes (RJ), a mãe era meio clarinha e o pai era preto, eram agricultores. Ele se tornou um político brilhante e abolicionista, mas não queria ser reconhecido como negro. Ele se maquiava para clarear a pele antes de ser fotografado, e as fotos eram retocadas.

É o primeiro e único presidente negro do Brasil. É uma figura importante por mostrar esse mascaramento, ou seja, a tentativa de não parecer negro, que foi típico do mulato aqui no Brasil. A imprensa o ridicularizava. Faço uma análise linguístico-filosófica do discurso racial, mostrando como ele é atravessado pela ambiguidade. Quis mostrar como há jogos de linguagem no discurso racista, para mostrar como a forma social escravista opera.

Nilo Peçanha lê jornais
Retrato de Nilo Peçanha - Reprodução

Há algumas semanas, participantes do Big Brother Brasil expressaram medo de um colega por ele seguir uma religião afro-brasileira. Qual o papel do medo na consolidação do racismo no país? O medo é um elemento importante nas relações hierárquicas. Torturavam-se escravos para infligir medo. Uma tortura podia começar porque a sinhá achava que o negro olhou atravessado para ela.

Mas o medo é uma faca de dois fios. O torturador tem medo também. Temer os negros foi algo que se intensificou com a Revolta dos Malês, em 1835, mas já vinha do Haiti e de Cuba e se disseminou entre as classes brasileiras.

Mas como esse medo de revoltas negras nas Américas se transforma no medo de manifestações culturais? O racismo cultural é o racismo do sentido que o outro produz. Junto com ter medo físico do negro vem, principalmente depois da Abolição, ter medo da cultura afro, do feitiço, que era um ponto de repulsa e atração, porque a classe média branca sempre se consultou nos cultos afros.

Como você sabe, eu sou de candomblé, da hierarquia do Ilê Axé Opô Afonjá. Conheci ao longo da vida professores razoáveis, ateus, que têm medo do pertencimento ao candomblé. A pessoa não acredita em nada, mas tem medo. Isso é o preconceito.

Ao mesmo tempo que há esse preconceito, as artes brasileiras promoveram uma celebração da cultura afro-brasileira, como na obra de tropicalistas ou de Jorge Amado. Como o racismo brasileiro comporta essa contradição? Porque ele não é estrutural [risos] e essa celebração não foi insurrecional.

Conheci bem o Jorge Amado. Ele dizia que não acreditava em nada, mas era do Axé Opô Afonjá como eu. Não viajava de avião sem que uma mãe de santo fizesse um jogo para ele, porque morria de medo. Quando me confirmei como obá de Xangô, Caymmi entrou comigo. Quando eu estava na Bahia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, esse pessoal não era de candomblé. Hoje, Gil também é obá de Xangô.

Quando digo que essas celebrações na cultura brasileira não representam uma insurreição, quero dizer que não são algo contra o Estado, é mais uma posição existencial. Mas celebrar o candomblé é celebrar aquilo que a cultura afro traz de mais precioso, o apego à vida.

Se o catolicismo é a religião do amor universal irradiado de Cristo, o candomblé é a alegria, uma alegria litúrgica. Quem é baiano é atravessado por essa liturgia. Jorge Amado foi o grande romancista disso. Ele inventa uma Bahia, a língua da Bahia para fora é o jorge-amadês. Todas aquelas histórias são e não são inventadas.

Abdias do Nascimento via um racismo implícito na obra de Jorge Amado. Jorge Amado é o ideólogo do povo nacional, e esse povo nacional era um povo mestiço, os baianos. Ele vai encontrar o modelo dessa mestiçagem no candomblé, em que essa mestiçagem não é só ideológica, é cultural também.

No Axé Opô Afonjá, eu já vi padre bater cabeça, já vi judeu bater cabeça. É isso que sempre atraiu Jorge Amado. Quando Jean-Paul Sartre esteve na Bahia, passou o dia inteiro no Axé Opô Afonjá, sentado com mãe Senhora.

No livro, o sr. tenta destacar as particularidades do racismo no Brasil, traçando a diferença em relação aos Estados Unidos. Nos últimos anos, alguns intelectuais têm criticado o que veem como uma influência excessiva do pensamento racial americano no debate público brasileiro. Como avalia essa questão? Os negros americanos são diferentes. Acho que nossas condições de luta e opressão são bastante diferentes e o que é igual é a cultura negra. O samba nasceu na Praça 11 nas mesmas circunstâncias que o jazz nasceu na praça Congo, em Nova Orleans. Nasceu do candomblé, com os baianos que civilizaram o Rio de Janeiro.

Falo da cultura como a vitalidade do povo. O que é forte nos Estados Unidos vem dos negros, nada é mais forte que a música, que o jazz. Isso cria uma ponte, é como se o ritmo viajasse pelos Estados Unidos, pelo Caribe, por Cuba, e essa ponte não está sob a égide do Estado, é também uma forma social.

Em um mundo com trocas possibilitadas pelas tecnologias da informação, seria necessário pensar o racismo com um recorte global em vez de apenas nacional? O pensamento nacional, se for forte, vai ser global. O pensamento global não atinge o núcleo do racismo, que está em conformações nacionais. O combate aqui no país tem que ser pensado em termos brasileiros para ser suficientemente forte e se irradiar transnacionalmente. É algo que o Brasil pode oferecer ao mundo, uma chave de saída do racismo.

Como? O principal modo de combater o racismo não é pensar intelectualmente a diferença. Não dou muita atenção a toda essa coisa de proteger linguisticamente a diferença, por exemplo. A filosofia da diferença é a grande filosofia moderna, que fala da necessidade de aceitar o diferente. É um pensamento avançado e global.

Mas, para mim, o principal modo de combater o racismo é o pensamento da aproximação, que é mais completo. É o morar junto, a vizinhança na escola, no trabalho, nas relações amorosas. A aproximação está em qualquer unidade que se possa construir, e o racismo se exacerba quando os diferentes estão próximos.

O Brasil já é um país que tem as oportunidades de aproximação pela própria heterogeneidade da população. Temos que pensar as diferentes formas de existir no Brasil e aprender com elas. Onde você não encontra racismo aqui? No Axé Opô Afonjá, no candomblé de Menininha do Gantois, no terreiro da Casa Branca, nas rodas de capoeira. Será que não pode vir daí uma lição?

Não é que as pessoas sejam perfeitas, mas há modos de vida ali que são antirracistas. São casos pequenos, mas é do pequeno que você começa a pensar o grande. Foi assim que Davi matou Golias.

O Fascismo da Cor: Uma Radiografia do Racismo Nacional

  • Preço R$ 54,90 (280 págs.); R$ 41 (ebook)
  • Autor Muniz Sodré
  • Editora Vozes

sexta-feira, março 10, 2023

A morte e nós, ocidentais

 Nós, ocidentais, sentimos a morte como, talvez, a experiência mais dolorosa. Sim, todos sabemos que um dia chegará, mas nunca estamos prontos. Alguns menos preparados, outros mais. Me incluo nos que aceitam a morte de idosos com bastante tranquilidade. Não que não lamente, claro, mas penso que em muitos casos, somos nós, os egoístas, que os queremos presentes, mesmo que apenas um corpo sem lucidez e com sofrimento físico e psíquico.


Esses dias vi um filme que me tocou muito. "Jestem Tutaj" ou "I'am here", de uma jovem diretora alemã.  https://vimeo.com/799104662 Está num post abaixo.

Há um outro filme japonês, belíssimo, "A partida", sobre um jovem músico desempregado que vai, com muita relutância, trabalhar numa funerária. É imperdível também. O trailer: https://www.youtube.com/watch?v=Sa8pSSrN2hg&ab_channel=ManseboArteAcredito
que todos deveríamos assistir filmes sobre a morte- enfrentá-la primeiro na ficção.
Há tantas obras sobre esse tema. " O sétimo selo" é outro filme que lembrei agora, mais difícil de se ver pela densidade dos filmes de Bergman. Outro "All that jazz"... Podem acrescentar nos comentários os que lembrarem, eu escrevo e posto sem pensar muito.

Li há anos "A morte de Ivan Ilitch" de Liev Tolstói, que jamais esqueci a sensação do homem doente, a percepção da vida na casa e seus conflitos internos.

A maioria de nós, vive numa bolha, somos saudáveis, nos cuidamos, temos acesso a medicamentos, médicos... e quem não tem? Ou aqueles que já estão num estado avançado da doença? Nas vezes em que precisei ir à Liga contra o câncer fazer exames, refleti sobre a morte ou a a vida, como queiram, e acredito que todos deveriam passar algumas horas ali dentro. Impressiona a alegria de pessoas em tratamento de quimioterapia, a vivacidade de muitos ali, claro que há pessoas com expressão de dor e tristeza também.
Outro lugar que todos deveriam conhecer é hospitais psiquiátricos. Quem nunca esteve ali dentro não tem ideia do que é a doença mental. É devastadora! Uma morte em vida!

Trabalhei quase dois anos com doentes mentais e foi uma das experiências mais ricas de toda minha vida. Era jovem. Gostei demais de conviver com eles, pela sensibilidade à flor da pele.
Na casa de Saúde Dr Eiras, era terapeuta de grupo de 10 pacientes- sim, funcionava- e na Villa Pinheiros, eu fazia acompanhamento de pacientes dentro e fora da clínica, no jardim... Alguns, mais experientes, faziam atendimento na casa dos pacientes que podiam sair para convívio familiar.

Enfim, a morte dói, sim, mas eu sou a favor da eutanásia e da morte assistida.

Lamento o Alain Delon ter escolhido morrer assim, mas também entendo que a vida perdeu o sentido para ele. Fui ler sobre, tem filhos e netos, mas perdeu a ex mulher com quem viveu uma vida toda, amigos...

Estou com uma amiga muito amada doente e peço aos deuses todos, que ela sobreviva, porque tem muito ainda a viver. Tem a minha idade, penso que ainda temos tanto a fazer enquanto estivermos lúcidas! 
Meu amigo escritor também não anda bem, tão querido... e gosta de viver. Vida longa aos meus queridos amigos!

Amém!

sábado, dezembro 31, 2022

Lembrando Contardo Calligaris

Contardo Calligaris:

Vídeo imperdível de Christian Dunker. Não consegui abrir aqui

Se gosta do Contardo veja. Delícia revê-lo.

 https://www.youtube.com/watch?v=m1qRD_r-w3c

sexta-feira, abril 10, 2020

Como sairemos desta pandemia?







Estamos todos cheios de incerteza. Até quando este vírus irá nos assombrar? Alguém querido nos deixará numa morte tão trágica? Como viveremos a partir de agora?

A humanidade mudará? Será menos egoísta, mais empática?

Nenhuma das respostas sabemos.

Há os que se desesperam, milhões deles por questões bastante objetivas, como sobreviver sem emprego? E se o provedor da família morrer?

Há muitas questões, ninguém pode nos responder.

Há quem se conforte com Deus. Cada um com o seu deus todo-poderoso que poderá nos salvar. Estes têm o manto divino a acolhê-los e aceitam o que acontece como um desejo divino. E se perguntam: o que fiz de errado para merecer isto? E rezam para serem perdoados.

Há os que negam a gravidade do momento, acham que não é preciso se isolar, basta lavar as mãos. E acusam os pobres chineses neste momento em que eles também estão em luto por tantas mortes.

Há os que são tão apegados à rotina que se perdem confusos num sofrimento atroz. Como viverão dias tão angustiantes? Sentem-se num buraco negro.

E os que estão sós sem nunca antes terem tido esta experiência? Alguns descobrem, com surpresa, que é bom estar só, outros entram em grande ansiedade e passam o dia buscando contatos online.

Famílias inteiras trancafiadas se estranhando pela falta de hábito de tanto convívio são obrigadas a lidar com os conflitos diários. É um grande exercício de tolerância e paciência.

Felizmente temos a internet! Fazemos contato com aquele amigo querido que está só, de quem não temos mais notícias. É a hora da alegria, ouvir ou ver um rosto querido. Podemos fazer refeições distantes, mas acompanhados da imagem do outro. Há muitas possibilidades.

Os rituais para se prevenir irritam alguns. Outros sentem prazer por já serem obsessivos com higiene.

Não há como negar o medo da morte. Seu espectro nos ronda.
Sim, alguns acreditam que são onipotentes, que não serão atingidos.

Mas quando este vírus chegará em nós?

Estamos todos num mesmo navio à deriva no meio do mar-uns no porão imundo, outros em suítes de luxo.

Alcançaremos a margem, salvos? Quem não pisará em terra firme? Não sabemos.

É hora de avaliarmos nossos valores. O que vale uma bolsa Louis Vuitton de seis mil reais ou o carro importado caríssimo na garagem? Por que para mim um iphone vale mais? Pela qualidade ou pelo status? Vale mais a pena sair para compartilhar uma noitada com amigos ou proteger a saúde de seus pais, avós?

A Terra está menos poluída e os mares mais limpos. Que tal se todos nós fossemos mais responsáveis a partir de agora! Que cada um faça sua parte naquilo que pode fazer!  Orientando os mais desatentos, conscientizando. Ou será que quando a situação se “normalizar” voltaremos a consumir em excesso, continuaremos destruindo nosso planeta. Ele deu a resposta rapidamente. Veneza com os canais limpos, o ar despoluído em tantas cidades, é um presente para todos. É preciso valorizar este momento para revermos nossos comportamentos. Somos egoístas e narcisistas.

É nossa chance de melhorarmos! Que tal?
É a melhor saída. 

domingo, janeiro 13, 2019

Infância e família- Maria Rita Kehl



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"Aquela família idealizada difundida pela publicidade e incutida no imaginário coletivo acaba provocando frustrações, preconceito e sofrimento em muitas pessoas. No mundo real, as pessoas se unem, famílias se formam, muitas vezes se desfazem, se refazem e em cada uma delas circula uma variedade de afetos, problemas e desafios.
Independente do modelo de família, o que se torna relevante é a maneira como se constroem os laços e principalmente como se assume a responsabilidade do cuidado com as crianças. Para falar sobre isto, a curadora desta série, Julieta Jerusalinsky convidou a psicanalista Maria Rita Kehl."

Excelente palestra, bastante clara.
Veja aqui.

sexta-feira, agosto 10, 2018

De onde você fala? Contardo Calligaris



Folha de São Paulo 09/08/2018


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Nossas supostas identidades não precisam coincidir com nossas motivações

Nos anos 1970, em Paris, não havia como se posicionar num debate sem receber a questão: "Mais d'où tu parles?", de onde você fala? E isso sobre qualquer tema que fosse.Cada um devia se perguntar quem estava "realmente" falando pela boca dele. Seguindo as ideias da época: 1) você fala "eu penso que xyz"; 2) o "eu" que diz que pensa xyz é apenas o sujeito da frase "eu penso", uma espécie de ilusão gramatical, que PARECE ser o lugar de onde sai a declaração; 3) atrás desse "eu" de "eu penso", há outro sujeito, eventualmente ignorado por quem fala: é ele, de fato, que pensa xyz, sem que o "eu" de "eu penso" sequer se dê conta disso.
Em outros termos, ao tomarmos a palavra, não conhecemos direito o próprio lugar de onde falamos —ou melhor, desconhecemos o agente que fala pela nossa boca. Somos divididos e escondemos (inclusive de nós mesmos) uma parte grande de nossas motivações.
A partir dos anos 1980 e 90, a política das identidades, nascida nos EUA, apoderou-se da pergunta "de onde você fala?".
"De onde você fala?", nos anos 1970, evocava a complexidade indefinida de nossas motivações. Hoje, a mesma pergunta parece se satisfazer com as identidades que estão na cara —tipo, você é homem ou mulher, hétero ou homo ou trans, branca ou negra, bonito ou não, rica ou pobre etc., e portanto é de lá que você fala, quer queira quer não queira.
É como se os grupos aos quais pertencemos social, histórica e geneticamente (nossas "identidades") fossem a origem essencial de nossas motivações (escondidas ou não) e, portanto, constituíssem uma espécie de viés inevitável.
Por exemplo, posso ser feminista, mas não deixo de ser homem; posso achar qualquer racismo uma idiotice, mas não deixo de ser branco; posso ser comunista, mas não deixo de ser burguês —e essas coisas todas que eu "não deixo de ser" colocam em questão o valor do que eu digo. Seja qual for nossa ideia ou militância, seríamos sempre uma quinta coluna de nossas identidades.
Essa dúvida (ou crítica) pode ter uma utilidade política, mas o fato é que as identidades às quais parecemos pertencer não coincidem necessariamente com nossas motivações.
A mente é complexa. Tem proletários que defendem políticas econômicas de direita porque, eles dizem, vai que eles ganham na Mega-Sena. Assim como há homossexuais que defendem sua própria discriminação. Interrogando a variedade das motivações, aliás, eis um clássico, para se divertir: a música/poesia de Giorgio Gaber, "Qualcuno Era Comunista".
Na minha história, a política das identidades e a pergunta "de onde você fala?" se cruzaram num estranho debate na New School de Nova York, no começo dos 1990 ou fim dos 80. A decana do departamento onde eu ensinaria era uma mulher branca que publicara livros seminais sobre o novo feminismo e, antes disso, sobre o racismo nos EUA. Isso não a impedia de se opor à ideia de considerar a raça (ou o gênero) como critérios para escolher o corpo docente do departamento. Acusada de dever sua opinião à cor de sua pele, ela declarou (de jeito propositalmente chulo e chocante) sua preferência sexual por homens negros. O que deixou a plateia estupefata e abriu, para mim, uma série de reflexões inconclusivas.
Se eu, homem ou mulher, transo com negros, o que isso diz sobre minha relação com minha "identidade" branca? Será diferente se eu preferir transar passivamente ou ativamente? Os donos de escravos que iam para a senzala para comer eram mais ou menos "brancos" do que aqueles que iam para ser comidos?
Falando de escravos, aliás, outra ideia forte da política das identidades é a das culpas que cada um carregaria consigo por causa das suas identidades.
Pareceria fácil objetar: como um branco chegado ao Brasil nos anos 1940 seria "culpado" pela escravatura no Brasil? Como um muçulmano de hoje seria responsável pela pirataria no Mediterrâneo? Mas, de fato, adoramos assumir as culpas (ou os "direitos") das nossas supostas identidades —provavelmente porque adoramos qualquer coisa que alivie nossa solidão.
Aqui, a psicanálise toma a direção oposta à da política das identidades, pois uma cura psicanalítica, em tese, serve para nos permitir de não ser apenas, neuroticamente, o fruto dos grupos onde nascemos, membros de uma família, de uma nação, de uma raça"...
Contardo Calligaris
Psicanalista, autor de “Hello, Brasil!” e criador da série PSI (HBO).

segunda-feira, agosto 06, 2018

A questão do aborto- Contardo Calligaris




A dor do aborto gera consequências físicas e emocionais sobre a mulher. Foto: Shutterstock





Absorvemos uma cultura que situa na mulher e no seu desejo a origem do mal


Folha de SP- 02.08.2018 


O Supremo Tribunal Federal está ouvindo argumentos a favor e contra a descriminalização do aborto voluntário até a 12ª semana de gestação.
Na Folha de 29/6: de 2008 a 2017, no Brasil, 2,1 milhões de mulheres foram internadas por complicações de abortos clandestinos. O custo para o SUS foi de R$ 486 milhões. Que o leitor calcule o custo da morte, do desespero e do desamparo dessas mulheres.
Essa realidade à parte, tento resumir minha posição:
1. Ninguém é "a favor" do aborto —só se discute para decidir se ele tem que ser considerado um crime ou não;
2. Para alguns, o aborto é um crime contra a vida do feto. Para outros, a interdição do aborto é um crime contra a vida da mulher que engravidou contra sua vontade. Um aborto deixa cicatrizes psíquicas dolorosas na mulher que abortou, mas uma gravidez indesejada e levada obrigatoriamente a termo também deixa cicatrizes dolorosas —na mulher e no seu rebento.
3. A partir de quando há vida (e, para os religiosos, alma)? Para permitir a fecundação in vitro, decidimos que o embrião inicial não é um ser completo e pode ser descartado. A 12ª semana de gestação é o limite aceito nos países onde o aborto voluntário não é crime: tempo suficiente para a mulher descobrir que está grávida e que não deseja ter filhos (não naquele momento ou não com aquele pai).
3. Quem "defende a vida" deve se lembrar que estão em jogo aqui duas vidas: a do feto e a da mulher que engravidou.
Nesta altura da conversa, se não antes, sempre alguém comenta: "Ela devia ter pensado nas consequências antes de transar".
É bom, porque isso me leva imediatamente ao que mais me importa dizer hoje sobre a questão do aborto.
Declaro-me impedido de opinar sobre esse assunto. E acho que qualquer pessoa honesta e instruída deveria se declarar impedida de opinar sobre o assunto: todos impedidos, salvo as mulheres que abortaram ou que estão atualmente procurando um aborto.
Cuidado: não acho que, em geral, só devam legislar as pessoas interessadas na legalização de seus atos passados ou iminentes. Nada disso.
Mas o fato incontestável, no caso do aborto, é que todos, homens e mulheres, há 2.800 anos, absorvemos uma cultura que situa na mulher e no seu desejo a origem do mal, do pecado e da tentação —começou na mitologia grega, com a figura de Pandora, e piorou com a de Eva, na Bíblia judaico-cristã.
Em relação ao desejo feminino, nossa cultura adota várias estratégias de defesa.
Negamos que esse desejo exista e preferiríamos que a mulher se expressasse só na maternidade (sonhamos com uma mãe virgem, e qualquer maternidade nos parece "santa" porque "justifica" a nossa lubricidade —transamos, mas, veja bem, foi para procriar).
Paradoxalmente, para ilustrar a luxúria e sua punição no inferno, a figura que nossa cultura usa é quase sempre feminina. E a luxúria sequer é o fruto da relação da mulher com um homem, mas da mulher com um diabo (como no famoso tríptico "A Luxúria", de Bruegel, o Velho, 1538).
O desejo feminino, caso ele se manifeste, é responsável por nossa própria lubricidade, pois a mulher nos tenta —como o demônio.
Precisamos controlar o desejo feminino —pense na fantasia masculina trivial de ser aquele que "sabe" fazer gozar as mulheres, quanto, quando e como ele quiser.
Se não conseguirmos controlar o desejo feminino, precisamos reprimi-lo: os homens de nossa cultura inventaram sua "inocência" violentando, torturando e assassinando centenas de milhares de mulheres "incontroláveis". Como teria dito Adão: não fui eu, "foi a mulher que me deste por companheira".
Em 2016-17, em Paris, houve uma linda exposição da qual me chegou o catálogo: "Présumées Coupables", presumidas culpadas. Em tese, os humanos são inocentes até prova do contrário, mas as mulheres são CULPADAS até prova do contrário —pois, de partida, elas são a encarnação do mal.
A exposição de Paris propunha centenas de originais de processos contra mulheres —de Joana d'Arc até as criminosas célebres dos séculos 19 e 20. Desfilavam assim as figuras canônicas do desejo feminino culpado: a encantadora, a maléfica, a sedutora e, claro, a infanticida.
Moldados por um ódio plurimilenar ao desejo sexual feminino, que quisemos exorcizar e controlar pela maternidade, como teríamos legitimidade para opinar sobre a criminalização ou não do aborto? Por pudor, meus amigos, declarem-se impedidos.
Contardo Calligaris
Psicanalista, autor de “Hello, Brasil!” e criador da série PSI (HBO).

terça-feira, outubro 25, 2016

Elisabeth Roudinesco: "psicanalistas devem se adaptar..."









Elisabeth Roudinesco: ‘psicanalistas devem se adaptar ao coaching e terapias curtas’




Leiam aqui.


domingo, julho 26, 2015

Gravidez precose, um tema que não se esgota







Gravidez precoce

Há anos, vi um programa de Serginho Grossman com a Sue Johanson  lembro que ficou espantada ao saber que as jovens, apesar de informadas, saberem que é preciso se prevenir contra a gravidez, muitas vezes engravidam. Sue ficou pasma quando o Serginho perguntou para a platéia se conheciam alguma jovem adolescente que tenha engravidado e, praticamente, todos conheciam.

O que acontece? Por que nossos jovens, apesar de informados, não usam camisinha ou outro tipo de cuidado?

Vou copiar aqui o trecho de uma palestra que faço para pais de adolescentes, eu escrevo e falo numa linguagem acessível a todos.


Gravidez precoce.


Uma mocinha que engravida aos 13/14 anos, na maior parte das vezes, não acreditava que ficaria grávida.

Vocês se lembram dos seus pais dizendo : “cuidado com a bicicleta” ou cuidado para não cair e você estar certo de que o pai ou a mãe estava exagerando, pois tinha certeza que não ia acontecer nada. Muitas vezes, não aconteceu, mas noutras aconteceu. O mesmo se dá com a gravidez, a jovem não acredita que aquela relação vá levá-la à gravidez, ou pensa que com ela não irá acontecer, este pensamento nós chamamos de mágico, onipotente, só porque pensa não irá acontecer, é assim que o jovem pensa.

O rapaz geralmente não está nem aí, para ele o problema é dela. Ele está errado, porque no caso de uma gravidez, ele também será responsabilizado, mas a sociedade coloca a responsabilidade maior na mulher. Quem não se preveniu foi ela, quem foi leviana foi ela, mas ela não estava fazendo sexo sozinha.

Muitas vezes a moça fica grávida na primeira relação, que é uma relação difícil para os dois, um encontro tenso, cheio de ansiedades. Ele sem querer usar camisinha para não falhar e ela insegura, não quer fazer nada que possa aborrecê-lo, também não quer parecer mais experiente que ele- “viu a safadinha, já sabia usar camisinha...” ou para mostrar que o quer de qualquer forma mesmo correndo risco.

Adolescente gosta de desafios e jogar com a possibilidade de engravidar ou não, pode ser uma jogada inconsciente na sorte ou o desejo de ter uma identidade própria, será mãe. Muitas vezes esta jovem é completamente invisível socialmente, a gravidez dá visibilidade a ela.

Quantos de vocês devem ter tido a primeira relação atrapalhada, apressada, às vezes em lugares improvisados?

Como resolver esta questão? Não é fácil, mas também não é impossível, tudo se resolve.

Quando acontece a gravidez geralmente fica escondida até não poder mais, tentam coisas para abortar, pulam,tomam aspirinas, coisas que as amigas ensinam.

As jovens não têm coragem de falar com os pais o que ocorre, até que fique tão evidente que não há mais como esconder. Então o que os pais devem fazer?

Tentar não se desesperar nem fazer escândalo, tudo tem saída.

Os pais geralmente gritam, esperneiam, até verem que não há outra saída a não ser tentar ser razoável.

Vem a culpa, “a culpa é tua, devia ter falado com ela!” “é tua, sempre distante, não toma conhecimento com os filhos!” e por aí vai...

Não adianta tentar encontrar os culpados, é hora de conversar, o que não foi conversado antes, procurar ajuda de gente mais esclarecida, mais madura e procurar um médico.

O pai do futuro bebê já sabe? Precisa saber, precisa ser responsável também, no caso do seu filho ser o homem, ele precisa assumir a paternidade, ser responsável. Se não se amam é melhor que não oficializem a relação, são muito jovens, terão outras relações amorosas.

Se a moça não quer o filho será necessário o apoio de um psicólogo/a, um médico para orientar.

Os avós serão sempre avós, não devem assumir o neto/a como se fosse seu filho, isto trará problemas futuros, os jovens precisam assumir suas responsabilidades, aos pais cabe ajudar no que for preciso, mas não assumir completamente a criança.

Aceitar as mudanças na vida é fundamental e todo adolescente nos colocará diante de situações novas. As crises são boas para melhorarmos, para crescermos, aproveitem as crises e se renovem.

Como vocês veem, eu não falei em aborto, nem educação sexual, deixo para outro dia.
Aborto é um tema que preciso abordar com cuidado nas palestras, é um tema tabu ainda.

Vocês concordam com o que eu disse no texto acima?

quarta-feira, abril 01, 2015

A Páscoa e a maioridade penal








Estamos na Semana Santa, domingo será Páscoa. Semana sagrada para todos nós cristãos. Vivemos mergulhados em Cristo. Vivemos, desde o nascimento, celebrando o cristianismo, você queira ou não.
Quem aqui foi batizado? Quem fez primeira comunhão? Casou na Igreja? Quase todos, um número ínfimo, não. Nós, classe média, estudamos, quase sempre em colégios religiosos, rezávamos no intervalo das aulas, íamos à missa aos domingos, obrigados ou não.
Pois é, Cristo, como todos sabemos e ouvimos repetidas vezes, nasceu e morreu na cruz para nos salvar.
Nos salvar de quê? Nos dar a graça dívina? Nos tornar melhores?
Para mim, é para nos fazer Homens cada vez melhores. O que seria isto?
Vivemos automatizados, é preciso acordar cedo, sair correndo para trabalhar para sobreviver, ou ganhar mais dinheiro, afinal o mundo demanda cada vez mais e mais.
Não paramos para refletir nunca! Não temos tempo! Quem tem cinco minutos , dez, para pensar o seu dia a dia? Quase ninguém. A maioria dirá: não tenho tempo! E não mente, ele acha que realmente não tem tempo. Tempo se cria. O tempo é elástico, sabemos, subjetivo.
A vida passa tão rápido, dizemos, é verdade,  ela escorre mesmo entre nossos dias, muitas vezes vazios.
Um dia nos descobrimos envelhecidos, não há mais tanto tempo pela frente, aquele futuro que esperávamos já chegou e dai?
Frustrados, adoecemos. Vêm todas as mazelas facilitadas pela debilidade do corpo, cada dia mais decadente.
É a vida, dizemos. A vida nem sempre é justa, quase sempre nos sentimos injustiçados. Desejamos tanto...
E ai? Como resgatar o tempo perdido? A sensibilidade adormecida...
Voltando a Cristo- nesta semana Ele está presente em nós, há apelos em todos os lugares pela Páscoa- hoje apenas uma data comercial- bom, acredito que o bom filho de Deus veio ao mundo para nos dar exemplo. A vida dele foi exemplar, com lendas ou não. Disse, em muitas ocasiões, para termos compaixão pelo outro. Pregou a igualdade entre nós- irmãos em Cristo, irmãos humanos. A humanidade nos faz irmãos. Não importa pele, credo, nada- somos todos iguais, queiramos ou não. Buda, séculos antes, disse o mesmo. Será que homens tão sábios estavam errados? Ou seremos nós os ignorantes, seres não evoluídos?
É desolador ver que caminhamos para trás como Homens em pleno século XXI!